sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

ARQUIVO

Da arte taciturna de um serial killer exasperado

Silêncio.

Ela não percebe, a noite também não. Ninguém percebe, tampouco Deus, aquele crápula. Escondo-me. Meus desejos recônditos cada vez mais subterrâneos.


Desculpe querida, um dia o mundo explode. Big-Bang. Um dia escarro meus fantasmas pela boca. A vida rasga e fode. E a carne, ah minha Florzinha, arde como mil infernos. Um cara fantasiado de coelho carregando balões sempre bate na porta da minha cabeça às seis em ponto. Os balões escapam de sua mão e desintegram-se misturados ao éter. Ele tira a cabeça de coelho e chora. Ele tem dentes de coelho. Chora pra cachorro o desgraçado. Você passa na rua, minha Florzinha, teu aroma de alecrim. Oh sim, eu também queria ser especial, queria fazer falta, você faz falta. Você é especial pra caralho. Teus olhos estranhos me maltratam a beça.


No começo eu a espreitava de longe. Depois comecei a levar um pedaço de arame escondido, só pra ter a sensação. Cada vez mais perto, teu aroma de alecrim. Mas agora, agora eu ando muito doente.


Há um vampiro a solta na solidão da noite. Ele perambula cheio de raiva com o choro sufocado na garganta. Só sai na sombra e na garoa. Tem uma menina de vestido branco rendado que fica no balanço pra lá e pra cá bem no fundo dos meus olhos. Não sei o nome dela, ela nunca fala comigo. É uma boa menininha, ela tem uma bicicleta com cesta de margaridas, tem um iô-iô quebrado e um gnomo que fica sempre sorrindo. Ela nunca fala comigo. Eu ando muito doente.


Toda vez que você se afasta, minha Florzinha, parece estar mais presente. Vinte e quatro horas, todo santo dia. Ainda morro.

Meu coração sujo parece uma caixinha de música, daquelas antigas com a bailarina rodopiando no meio e uma melodia triste saindo de dentro dela.


Então ele te toma nos braços botando um sorriso idiota em sua cara idiota. Você é a cadelinha dele. Tão medíocre e obediente. Como num programa de tv. Abraçados como naqueles ridículos bolos de casamento.

Oh sim, eu trago um soco-inglês no bolso. Sempre estou pronto pra mais um round contra a felicidade. Desprezo qualquer idéia de felicidade. Eu ando muito doente.


Enterneço-me com teus olhos pálidos, quase fora de órbita. Você parece uma santa. Minha Santa Joana dos Matadouros. Tão alva e imaculada. Você sangra tão bem, minha Florzinha. Uma canção de ninar para minha criança morta. Vou esperar eternamente seu aceno e seu sorriso de soslaio. Tão bela.

Enterrei pra sempre dentro de seu peito o último resquício da minha doçura.

Silencio.


Texto publicado na Bestiário - revista de contos, número 25, Agosto de 2006


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