terça-feira, 11 de janeiro de 2011

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Teus olhos se parecem com um clarão de estrelas irrompendo o céu negro depois da chuva

Suo, entre espasmos e lençóis encharcados, eu suo. Revirando os olhos com o estômago revirado, fedendo como uma porca. Chafurdo na cama limpa, estéril. Vazia. Suo de volúpia e de raiva. Misturo meus líquidos, todos eles. Química desgraçada. Sorvo, expilo, engulo, me fodo. Tudo é até o fim, sem rede de proteção. Nua ao vento. Sem nada. Logo eu que costumava guardar até as velhas bonecas da infância, ainda que imundas e destruídas, todas ali no cômodo de cima, dentro do baú repleto de fantasmas. Eu que guardava até as cartinhas, papéis amassados, a caixinha de música quebrada, o laço cor de rosa. Suo, febril e cheia de fúria. Sem conseguir esquecer, eu suo.

Grito. O quarto é um claustro, quente, abafado; meu esquife. O teto parece despencar. Soterrada, quedo-me em mil infernos. Mil. Eu grito. Como num sonho onde ninguém pode me ouvir. Grito de dor. Aviltada, eu grito. Sozinha. Nauseada pelas lembranças nos corredores escuros da memória. Fodida, eu grito. Minha voz não sai, ainda assim, emudecida, eu grito. Silêncio escarrado.

Oro, desesperada, eu oro Senhor. Pai nosso, que estais no Céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso Reino, seja feita a vossa Vontade, assim na Terra como no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido; e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém. Oro. Jesus, ajude-me na minha fraqueza. Sufoco meus desejos. Abri uma cova no quintal, onde enterro meus amores-cadáveres. Oro todo santo dia. Desesperançada e sem fé, eu oro. Vilipendiada pelo seu sorrisinho feliz e idiota, cordeiro. Oro aos anjos e ao diabo. Pouco importa. Oro como uma mãe que perdeu seu filho na guerra. Extrema unção.

Pico, eu pico meu braço com heroína. Porque sinto frio. A noite naufraga. Seguro com os dentes a borracha apertando-a em meu braço. Veia saltada, pele e agulha. Pico. Doente eu pico meu braço. Deus pilotando um Ford em minhas veias, oh sim. Estraçalhada. A mil por hora. Olhos estatelados. Um filete de sangue escorre pelo braço. Um raiozinho de luz escorre pela fresta da janela.

Sangro. Tiro de dentro da gaveta um canivete. Abro um talo em minha perna. Algumas cicatrizes nunca se fecham. Eu sangro. Um vermelho colorido, espesso, aquoso. Sangro, em toda ferida há um tanto de ternura. Acalentada, eu sangro. Desenho um coração na parte interna do meu braço. Penso em escrever seu nome dentro dele. Entorpecida, eu sangro. Os ponteiros do relógio badalam incessantemente. Corto a palma da minha mão, construo eu mesma meus próprios estigmas. Na cabeceira da cama, uma cruz. O crucificado me olha e sangra. Furo meu mamilo, sinto o líquido quente. Rasgo-me inteira, feito vaca em matadouro.

O sol invade o quarto, abrasa meus cortes. Jogada na cama como se fosse no açougue, pintura escarlate, eu sangro. Tudo me abandona, tudo menos os teus olhos. Os teus pálidos olhos. Eu não esqueço, e sangro.

Restam-me ainda os pulsos.

Texto publicado no site Cronópios, Abril de 2006.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

ARQUIVO

Da arte taciturna de um serial killer exasperado

Silêncio.

Ela não percebe, a noite também não. Ninguém percebe, tampouco Deus, aquele crápula. Escondo-me. Meus desejos recônditos cada vez mais subterrâneos.


Desculpe querida, um dia o mundo explode. Big-Bang. Um dia escarro meus fantasmas pela boca. A vida rasga e fode. E a carne, ah minha Florzinha, arde como mil infernos. Um cara fantasiado de coelho carregando balões sempre bate na porta da minha cabeça às seis em ponto. Os balões escapam de sua mão e desintegram-se misturados ao éter. Ele tira a cabeça de coelho e chora. Ele tem dentes de coelho. Chora pra cachorro o desgraçado. Você passa na rua, minha Florzinha, teu aroma de alecrim. Oh sim, eu também queria ser especial, queria fazer falta, você faz falta. Você é especial pra caralho. Teus olhos estranhos me maltratam a beça.


No começo eu a espreitava de longe. Depois comecei a levar um pedaço de arame escondido, só pra ter a sensação. Cada vez mais perto, teu aroma de alecrim. Mas agora, agora eu ando muito doente.


Há um vampiro a solta na solidão da noite. Ele perambula cheio de raiva com o choro sufocado na garganta. Só sai na sombra e na garoa. Tem uma menina de vestido branco rendado que fica no balanço pra lá e pra cá bem no fundo dos meus olhos. Não sei o nome dela, ela nunca fala comigo. É uma boa menininha, ela tem uma bicicleta com cesta de margaridas, tem um iô-iô quebrado e um gnomo que fica sempre sorrindo. Ela nunca fala comigo. Eu ando muito doente.


Toda vez que você se afasta, minha Florzinha, parece estar mais presente. Vinte e quatro horas, todo santo dia. Ainda morro.

Meu coração sujo parece uma caixinha de música, daquelas antigas com a bailarina rodopiando no meio e uma melodia triste saindo de dentro dela.


Então ele te toma nos braços botando um sorriso idiota em sua cara idiota. Você é a cadelinha dele. Tão medíocre e obediente. Como num programa de tv. Abraçados como naqueles ridículos bolos de casamento.

Oh sim, eu trago um soco-inglês no bolso. Sempre estou pronto pra mais um round contra a felicidade. Desprezo qualquer idéia de felicidade. Eu ando muito doente.


Enterneço-me com teus olhos pálidos, quase fora de órbita. Você parece uma santa. Minha Santa Joana dos Matadouros. Tão alva e imaculada. Você sangra tão bem, minha Florzinha. Uma canção de ninar para minha criança morta. Vou esperar eternamente seu aceno e seu sorriso de soslaio. Tão bela.

Enterrei pra sempre dentro de seu peito o último resquício da minha doçura.

Silencio.


Texto publicado na Bestiário - revista de contos, número 25, Agosto de 2006


terça-feira, 4 de janeiro de 2011

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Abril

Acordou no meio da noite, encharcada de suor. Na verdade mal conseguiu pregar os olhos. Insone, ouvia vozes. Todos os ruídos, da cidade lá fora ou dos vizinhos no apartamento de cima, pareciam passos de algum estrangulador que invadira seu quarto. Um demônio qualquer, pronto para atacá-la.

O relógio marcava 3:00 AM, meio tonta abriu a cortina, havia respingos de chuva na janela, esfregou os olhos e bocejou. Lá embaixo as luzes dos carros, dos semáforos, dos postes. A cidade parecia uma constelação de cabeça pra baixo. Sentou na cama, acendeu um cigarro e contemplou o som estéril do silêncio de seu quarto, aterrador. Resquícios de sonhos confundiam sua cabeça: um gnomo, um beiral com o céu azul como pano de fundo, o cheiro de grama molhada, um rosto desconhecido em close-up, ruas sinuosas com casinhas tortas, uma estação de metrô que dá numa estrada escura e deserta, aquela sensação de queda, um cadeado, uma dentadura, mechas de cabelo de criança, sombras desfocadas e não se sabe mais o quê. Voltou para janela, viu a luzinha de um avião passando lá longe e pensou que fosse um disco voador, sempre acha que é um disco voador. Calafrio.

Procurar conforto nas luzes da cidade no horizonte era ineficaz diante do pânico que se instalava. Ouvia vozes. O sereno cortava como navalha afiada. Alguém a observava, disso tinha certeza.

Apagou o cigarro e acendeu a luz do corredor. Foi para o banheiro ainda meio cambaleando. Jogou um tanto de água no rosto, arrumou os cabelos com as mãos, sem, no entanto, sequer olhar para o espelho - sabe-se lá o que podia aparecer no lugar de seu reflexo - porque não aquele que a espreitava? Pegou o casaco e a chave do carro e resolveu sair. Sem eira nem beira. Só não podia continuar ali, o pânico chegara ao limite.

Na rua foi se acalmando, talvez tenha sido a anfetamina ou o Blood Mary da noite anterior. A cidade dorme leve como uma pluma. Agora que se sabe de onde vêm os ruídos, o que toma todo interior de seu carro é o mesmo silêncio estéril de seu quarto. Acende outro cigarro e liga o rádio. A iluminação dos postes faz desenhos oblíquos nas calçadas. As ruas estão vazias, exceto por um cachorro ou um mendigo ao relento. De vez em quando passa um carro. Nem é bom parar nos semáforos. O frio embaçou os vidros. O DJ oferece uma canção para dois corações apaixonados. Assim não dá. Tudo vai ficando pra trás no retrovisor: o chafariz colorido, o museu, o néon do boteco, o parque de diversão desativado. A previsão para esta quinta-feira é de céu nublado com períodos de parcialmente nublado e possibilidade de que ocorram pancadas de chuva e trovoadas para todo o Estado de São Paulo. A temperatura chega a 19ºC na região norte e a 9ºC na capital.

O sono não chega, melhor não voltar ainda. Adentra o túnel na 23. The tide is high but I'm holding on. I'm gonna be your number one. I'm not the kind of girl. Who gives up just like that. Oh, no. It's not the things you do. That tease and wound me bad. But it's the way you do. The things you do to me. I'm not the kind of girl. Who gives up just like that. Oh, no. The tide is high but I'm holding on. I'm gonna be your number one. Number one, number one... Essas rádio-rock são legais, pensa. Algumas canções te levam para um tempo que parece perdido, que você nunca viveu, um limbo imaginário. Idiotice, pensa. Outro túnel. Nos muros do joquéi clube ficam uns travecos, mais a frente, perto da USP, as prostitutas. O cara da rádio, entre uma música e outra, fala umas merdas. Abaixa o volume, depois aumenta novamente, ao máximo. I come home in the morning light. My mother says -when you gonna live your life right? Oh mother dear, we're not the fortunate ones. And girls they want to have fun. Oh girls just want to have fun. The phone rings in the middle of the night. My father yells, what you gonna do with your life. Oh daddy dear, you know you're still number one. But girls they want to have fun. Oh girls just want to have fun. That's all they really want. Some fun. When the working day is done. Girls - they want to have fun. Oh girls just want to have fun. Some boys take a beautiful girl. And hide her away from the rest of the world. I want to be the one to walk in the sun. Oh girls they want to have fun. Oh girls just want to have...

Clareia de mansinho, a manhã usa o mesmo perfume que a saudade. Vem à tona a imagem dos olhos borrados de sua ex. Triste, inebriada com um cigarro entre os lábios. É preciso voltar, a cidade começa a exalar todo seu veneno à luz do dia. Há tempo ainda. Já conhece de cor o caminho.

Sabe bem o que encontrará em seu quarto: as mesmas vozes, os mesmos ruídos, os comprimidos, os passos do estrangulador, a presença de algum demônio, as luzes da cidade no horizonte, outro reflexo no espelho e aquela imensa solidão a lhe observar todas as noites.

Todas as noites.

Todas.

Texto publicado na coletânea de contos Visões de São Paulo, Tarja Editorial - 2006

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

ALGUMAS IDÉIAS NA CABEÇA

Há anos não escrevo em um blogue. Meu último, editado no UOL, fiz em 2006. Ano passado comecei uma idéia de uma novela escrita em work in progress chamada Hell City. Publiquei dois posts do primeiro capítulo, mas tive que parar por conta de um trabalho. Talvez eu retome a novela, só não sei se quero fazer no mesmo esquema. Pretendo lança-la para download gratuito. Achei essa idéia de work in progress muito exibicionista pro meu gosto. A proposta partiu de um amigo em São Paulo que faz às vezes de agente literário no Brasil. Talvez funcionasse com outra escritora, eu sou neurótica demais.

Decidi retornar ao blogue como exercício e por conta de uma necessidade de manter contato com meus leitores. Vou disponibilizar aqui alguns textos antigos publicados em livro, pois todos foram produzidos de maneira independente, sem editora (exceto A Vampira B que saiu pela pequena e extinta Cabaré Maldito do Levy Siqueira), portanto há anos estão esgotados e fora de circulação. Talvez ainda seja possível que alguma cópia tenha ficado perdida por alguns sebos do centro de São Paulo. Quem quiser tentar. Este também será um espaço para novos trabalhos, claro.

Acho que é isso. Fiquem à vontade para opinar, criticar, elogiar, sugerir e tudo o mais que der na telha.

Ah, a foto acima é da Audrey Hepburn e eu nem sei porque coloquei aí!

Sejam bem vindos!