terça-feira, 4 de janeiro de 2011

ARQUIVO

Abril

Acordou no meio da noite, encharcada de suor. Na verdade mal conseguiu pregar os olhos. Insone, ouvia vozes. Todos os ruídos, da cidade lá fora ou dos vizinhos no apartamento de cima, pareciam passos de algum estrangulador que invadira seu quarto. Um demônio qualquer, pronto para atacá-la.

O relógio marcava 3:00 AM, meio tonta abriu a cortina, havia respingos de chuva na janela, esfregou os olhos e bocejou. Lá embaixo as luzes dos carros, dos semáforos, dos postes. A cidade parecia uma constelação de cabeça pra baixo. Sentou na cama, acendeu um cigarro e contemplou o som estéril do silêncio de seu quarto, aterrador. Resquícios de sonhos confundiam sua cabeça: um gnomo, um beiral com o céu azul como pano de fundo, o cheiro de grama molhada, um rosto desconhecido em close-up, ruas sinuosas com casinhas tortas, uma estação de metrô que dá numa estrada escura e deserta, aquela sensação de queda, um cadeado, uma dentadura, mechas de cabelo de criança, sombras desfocadas e não se sabe mais o quê. Voltou para janela, viu a luzinha de um avião passando lá longe e pensou que fosse um disco voador, sempre acha que é um disco voador. Calafrio.

Procurar conforto nas luzes da cidade no horizonte era ineficaz diante do pânico que se instalava. Ouvia vozes. O sereno cortava como navalha afiada. Alguém a observava, disso tinha certeza.

Apagou o cigarro e acendeu a luz do corredor. Foi para o banheiro ainda meio cambaleando. Jogou um tanto de água no rosto, arrumou os cabelos com as mãos, sem, no entanto, sequer olhar para o espelho - sabe-se lá o que podia aparecer no lugar de seu reflexo - porque não aquele que a espreitava? Pegou o casaco e a chave do carro e resolveu sair. Sem eira nem beira. Só não podia continuar ali, o pânico chegara ao limite.

Na rua foi se acalmando, talvez tenha sido a anfetamina ou o Blood Mary da noite anterior. A cidade dorme leve como uma pluma. Agora que se sabe de onde vêm os ruídos, o que toma todo interior de seu carro é o mesmo silêncio estéril de seu quarto. Acende outro cigarro e liga o rádio. A iluminação dos postes faz desenhos oblíquos nas calçadas. As ruas estão vazias, exceto por um cachorro ou um mendigo ao relento. De vez em quando passa um carro. Nem é bom parar nos semáforos. O frio embaçou os vidros. O DJ oferece uma canção para dois corações apaixonados. Assim não dá. Tudo vai ficando pra trás no retrovisor: o chafariz colorido, o museu, o néon do boteco, o parque de diversão desativado. A previsão para esta quinta-feira é de céu nublado com períodos de parcialmente nublado e possibilidade de que ocorram pancadas de chuva e trovoadas para todo o Estado de São Paulo. A temperatura chega a 19ºC na região norte e a 9ºC na capital.

O sono não chega, melhor não voltar ainda. Adentra o túnel na 23. The tide is high but I'm holding on. I'm gonna be your number one. I'm not the kind of girl. Who gives up just like that. Oh, no. It's not the things you do. That tease and wound me bad. But it's the way you do. The things you do to me. I'm not the kind of girl. Who gives up just like that. Oh, no. The tide is high but I'm holding on. I'm gonna be your number one. Number one, number one... Essas rádio-rock são legais, pensa. Algumas canções te levam para um tempo que parece perdido, que você nunca viveu, um limbo imaginário. Idiotice, pensa. Outro túnel. Nos muros do joquéi clube ficam uns travecos, mais a frente, perto da USP, as prostitutas. O cara da rádio, entre uma música e outra, fala umas merdas. Abaixa o volume, depois aumenta novamente, ao máximo. I come home in the morning light. My mother says -when you gonna live your life right? Oh mother dear, we're not the fortunate ones. And girls they want to have fun. Oh girls just want to have fun. The phone rings in the middle of the night. My father yells, what you gonna do with your life. Oh daddy dear, you know you're still number one. But girls they want to have fun. Oh girls just want to have fun. That's all they really want. Some fun. When the working day is done. Girls - they want to have fun. Oh girls just want to have fun. Some boys take a beautiful girl. And hide her away from the rest of the world. I want to be the one to walk in the sun. Oh girls they want to have fun. Oh girls just want to have...

Clareia de mansinho, a manhã usa o mesmo perfume que a saudade. Vem à tona a imagem dos olhos borrados de sua ex. Triste, inebriada com um cigarro entre os lábios. É preciso voltar, a cidade começa a exalar todo seu veneno à luz do dia. Há tempo ainda. Já conhece de cor o caminho.

Sabe bem o que encontrará em seu quarto: as mesmas vozes, os mesmos ruídos, os comprimidos, os passos do estrangulador, a presença de algum demônio, as luzes da cidade no horizonte, outro reflexo no espelho e aquela imensa solidão a lhe observar todas as noites.

Todas as noites.

Todas.

Texto publicado na coletânea de contos Visões de São Paulo, Tarja Editorial - 2006

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